A Song of Ice and Fire – George R. R. Martin – Parte III: A Análise

Continuando com a última parte do especial aqui do blog, já que a Editora Leya anunciou a publicação da saga no Brasil.

Para quem não está acompanhando, aqui vão os links para a PARTE I e para a PARTE II do especial.

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As Referências

Claro que é impossível determinar todo o caldo referencial de onde uma série surge, ainda mais se a bagagem literária e cultural do autor é extensa. Às vezes o personagem X surgiu da observação de uma pessoa conhecida, ou o evento Y surgiu de uma “digestão inconsciente” de vários dados dispersos entre si. A fonte da inspiração acaba sendo essa, no fim das contas, a absorção ao longo da vida de fatos, eventos, leituras, personagens reais ou não, sensações pessoais, enfim, da vivência.

Não existe criatividade sem alimentação, não há como construir um cenário convincente para uma história sem alimentar-se de sua própria história (às vezes me dá desgosto em perceber o quanto algumas pessoas que querem seguir o caminho de escritoras desconhecem a história brasileira, que deveria ser o mínimo), geografia, um pouquinho de ciências naturais para não cair no física, quimica ou biologicamente impossível e muita literatura. Ler os clássicos é uma exigência “para ontem” – afinal, tem muita gente por aí querendo reinventar a roda, por que não descobrir e apreciar aquilo que foi feito?

Seria impossível para mim analisar todas as referências de George R. R. Martin ou de quem quer que seja, mas tem algumas bem interessantes e dignas de nota.

A primeira, e mais óbvia de todas, é a referência à Guerra das Duas Rosas e aos eventos históricos ingleses ocorridos do século XII até mais ou menos o século XVII. Para os desavisados, a Guerra das Duas Rosas foi uma guerra civil ocorrida no século XV entre as famílias York e Lancaster, que disputavam o trono inglês. Bom, o símbolo dos York era a rosa branca e o dos Lancaster a rosa vermelha, então aí está a origem do nome do conflito – e se pararmos para pensar, além da inspiração dos nomes, uma das cores dos Stark é o branco e uma dos Lannister é o vermelho 😉

Há também várias referências a nobres ingleses (a mais notória, a Ricardo III, que tem seu espectro dividido em dois personagens: o Ricardo III real inspirou Stannis Baratheon, enquanto o Ricardo III concebido por Shakespeare inspirou Tyrion Lannister) e a eventos ocorridos no período acima destacado.

Mas, claro, não apenas aos ingleses. Alguns outros personagens históricos europeus dão o ar de sua graça, bem como a inspiração das ricas famílias italianas renascentistas (dá para ver um eco bem grande dos Bórgias, na concepção da família Lannister, pelo poder, riqueza e devassidão moral. A própria Cersei tem muito de Lucrezia Borgia em si).

E também a visão de outros povos. Os Dothraki, o povo dos cavalos, tem muito dos hunos/mongóis históricos, assim como os Ironborn são uma mistura de vikings com os navegadores portugueses. As cidades-estado do outro lado do mar lembram a dinâmica das cidade-estado gregas e Braavos é inspirada em Veneza e seus canais.

E as referências ficcionais? As histórias de cavalaria do século XIX – se procurarem direitinho, vão encontrar o Ivanhoé lutando justas em Westeros, assim como uma versão dark do Robin Hood e de seus foras-da-lei. Dom Quixote está lá – como referência a personagens (dá para encontrar no mínimo dois Quixotes e dois Sanchos na série), ao cenário e até mesmo certa personagem que vai assistir a uma peça chamada Knight of the Woeful Contenance (“O Cavaleiro da Triste Figura”) 😉

Os clássicos, como Crime e Castigo e Moby Dick, marcam presença – e também a fantasia e a ficção científica clássicas. As referências a Tolkien, em temática e até mesmo em alguns nomes são tão claras que não precisam de comentários. Os Ironborn e sua cultura também são uma clara homenagem a H. P. Lovecraft – desde seu símbolo, o Kraken, passando por sua religião, que cultura o Deus Submerso, até Dogon, um de seus ancestrais 😉

Outra obra que é referência claríssima é Duna – tanto pelo papel assumido pela política e pela intriga social em uma obra ficcional quanto por pontos específicos, como uma releitura dos dançarinos faciais e dos mentats.

A fantasia mais contemporânea, como Black Company do Gleen Cook – em que o desenvolvimento dos personagens é forte e onde os personagens cinza começam a ter lugar de destaque – a obra de Jack Vance e, porque não, a saga Wheel of Time do amigo pessoal Robert Jordan também estão lá.

Partindo para a mitologia, talvez a primeira e mais clara das lendas referencias seja o ciclo arturiano – tanto as lendas quanto um bocadinho de Once and a Future King, do T. H. White – e, por que não, do meu “querido” Bernard Cornwell. Alguns dos personagens lembram Lancelot, Galahad, Merlin, Mordred e todos os outros. E, inclusive, o próprio rei Arthur – o filho bastardo do Uthred e único e oculto herdeiro de um trono vago.

Também há várias referências mitológicas gregas e celtas – quanto às gregas, não apenas as mitológicas, mas também os das tragédias, como a tentativa vã de escapar de profecias.

Enfim, essa foi só uma pincelada. Leiam vocês também e coloquem aí nos comentários as referências que vocês encontrarem ^^

A Resenha

O grande mérito de George R. R. Martin e de A Song of Ice and Fire é dar um passo adiante no cânon da fantasia contemporânea. Enquanto muitos repetem fórmulas – ou mesmo avançam pouco dentro do pré-estabelecido mas não conseguem ir além – essa é a inauguração do novo dentro da fantasia.

J. R. R. Tolkien é um dos cânons da fantasia moderna (e a utilização de “moderna” e “contemporânea” aqui é proposital). Não dá para negar sua influência em tudo aquilo o que veio depois – desde a alta fantasia de Gary Gygax e Dave Arneson (os criadores do Dungeons and Dragons – o RPG -, apesar de sua inspiração alegada ser Robert Howard e o sword and sorcery) até a fantasia urbana de Neil Gaiman.

Mesmo as séries mais contemporâneas, como Wheel of Time, tem uma raiz tolkeniana arraigada, por mais que os anões, elfos e fireballs – ou seja, o clichê e o lugar comum da alta fantasia – estejam distantes. São passos que caminham para a evolução e para a revolução.

Os personagens cinza – ou seja, aqueles em que o bem e o mal convivem igualmente – não são novidades na ficção fantástica, vide a série Black Company – do início da década de 1980 e que traz como protagonistas um grupo de anti-heróis. Como já disse antes, a política ter papel pivotal em uma trama, tendo suas nuances exploradas, também não é novidade, vide Duna – que também é uma obra-prima, um divisor de águas e um cânon dentro da ficção científica – que é de 1965. Então, A Song of Ice and Fire representa inovação temática? Não. Mas representa um modo de fazer inovador.

O que faz a saga funcionar – e destacar-se das várias similares – é a junção dos elementos na contagem da história: o cenário fantástico detalhado e profundo, a trama política que se assemelha a um romance histórico e os personagens humanos e carismáticos. Meu conselho hoje para alguém que quer escrever fantasia – ou entender os contornos do gênero: leia Tolkien. E leia Martin.

É fácil encontrar na obra vários dos clichês de fantasia: o príncipe prometido, a profecia, o cavaleiro andante, a linda princesa que se apaixona pelo guerreiro rude, a menina que se veste de homem para poder lutar… Só que a grande maioria deles vem com uma roupagem nova e não óbvia. É a inovação e a criação, não a mera repetição vazia do que se viu em obras anteriores. (para uma lista bem interessante E CHEIA DE SPOILERS dos clichês de A Song of Ice and Fire – e uma boa amostragem de como alguns foram subvertidos – clique AQUI)

Não posso fazer ainda uma análise completa da saga – principalmente porque ainda faltam no mínimo mas três livros para serem lançados e há alguns desenvolvimentos de personagem que precisam ser esclarecidos, mas mesmo que nunca haja uma conclusão, é leitura obrigatória.

E as falhas? A principal delas são algumas incongruências narrativas ocorridas no livro três (e que infelizmente não dá para explorar sem esbarrar em milhares de spoilers, mas se alguém tiver lido e desejar MESMO a explicação, cutuque), que culminaram no lançamento, em uma década, apenas do quarto livro, mas não sei se elas serão corrigidas nos próximos livros, então este ponto fica em aberto.


A Game of Thrones, o Seriado

Agora é oficial!

A HBO anunciou a produção da série A Game of Thrones, a adaptação de A Song of Ice and Fire, que deve estreiar no início de 2011. O elenco conta com nomes como Sean Bean (o Boromir de Senhor dos Anéis, entre outros) como Eddard Stark, Lena Headey (a Rainha Gorgo de 300, a Sarah Connor de The Sarah Connor Chronicles, entre outros) como Cersei Lannister e muitos outros. Bom, aqui fica o registro, falo mais sobre o seriado no futuro (ainda mais porque sou fã de Rome, Band of Brothers, True Blood… :P)


Westeros sob outros olhares

Aqui, duas resenhas nacionais sobre A Song of Ice and Fire, feitas por Ana Cristina Rodrigues e Rober Pinheiro.

Internacionalmente, indico a Westeros.Org, que é um fansite com as bênçãos do autor da série, bem como o Tower of the Hand, para informações mais rápidas. Sobre a produção do seriado, tem o Winter is Coming, com informações quentes.

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E com isso, acabamos nosso especial A Song of Ice and Fire e retomamos a programação normal! Caso vocês queiram ver mais informações sobre a série, análises e personagens, peçam, que terei prazer em atender 😛

O link de comentários está aberto, acima.

E até a próxima!

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Curioso para ler a série?

Livros em inglês, no original: A Game of ThronesA Clash of KingsA Storm of SwordsA Feast for Crows
Em português: A Guerra dos TronosA Fúria dos Reis



Uma resposta para “A Song of Ice and Fire – George R. R. Martin – Parte III: A Análise”.

  1. Muito bacana. Eu tenho que ler. Ainda está no mais ouvi falar do que conheço propriamente. Aí, eu vejo o que acho. Mas muito boa a matéria.

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