A Song of Ice and Fire – George R. R. Martin – Parte II: Os Alicerces

Continuando o especial aqui do blog, já que a Editora Leya anunciou a publicação da saga no Brasil.

Para quem não está acompanhando, a Parte I do especial está AQUI.

E peço mais uma vez desculpas mas, como já havia dito, o post anterior teve um quê de “edição extraordinária”. Continuo bastante ocupada com os compromissos acadêmicos – e com algumas novidades que vocês logo logo ficarão sabendo 🙂 Desculpem mesmo pela demora, mas haverá compensação 🙂

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É difícil falar de uma “grande obra grande” em o poucas palavras, ainda mais quando há um imenso volume de informação a ser tratada: textual, intertextual, contextual… Então, para que essa seja uma leitura um pouco mais agradável para você que acompanha este blog, continuamos o especial A Song of Ice and Fire.

O Autor

George R. R. Martin, o autor da obra, não é nenhum iniciante na arte da escrita. Ele despontou para o meio da ficção especulativa dos EUA no inicinho da década de 1970, com publicações de contos na Isaac Asimov Magazine e em outras mais. Seus primeiros romances foram publicados no finalzinho da década de 1970 e início da década de 1980 – onde ele foi trabalhar como roteirista em Hollywood. Lá, roteirizou a série A Bela e a Fera (que passou no Brasil numa dessas sessões aventura da vida).

Cansado da pressão hollywoodiana e após sofrer alguns reveses, como séries não produzidas, George R. R. Martin resolveu dedicar-se àquela que se tornaria sua obra-prima, A Song of Ice and Fire. O primeiro livro foi lançado em 1996, já com muito sucesso.

Mas por que eu estou falando do autor, já que quase sempre as resenhas do blog se limitam às obras: por algumas atitudes muito interessantes que ele tem em sua profissão. A primeira delas é o incentivo à publicação de antologias – tão comuns lá fora e uma moda que queremos que pegue aqui no Brasil também – que reunem autores veteranos e novatos e algumas delas que ele mesmo organiza (inclusive, o outro projeto corrente dele, Wildcards, diz respeito a um universo de ficção científica compartilhado por vários autores. Muitos livros já foram lançados e por ser um universo grande, continuam sendo).

A segunda diz respeito à interação com o público. Ao contrário de alguns autores que vivem em torres de marfim e têm nojinho de seus leitores, George Martin gosta da proximidade do público, com direito a um blog até bem divertido e participações constantes em eventos. Inclusive é interessante dizer que sua companheira, Parris, é ativa e atuante no fandom de A Song of Ice and Fire!

E tudo isso é interessante pela humanização do autor – tanto quanto produtor de texto como quanto incentivador. Eu escrevo e tem muitos leitores daqui que escrevem também e essa postura de ser mais do que autor, mas também incentivador e agitador é muito interessante. Outra coisa que fica clara também: são raríssimos os casos dos autores que farão sua obra-prima aos 20 anos de idade, sem uma alimentação cultural intensa ou muito trabalho anterior e que mesmo um autor experiente sofre por percalços para terminar seus escritos de maneira satisfatória.

O Narrador

O narrador da saga tem uma peculiaridade interessante, que vale a pena ser destacada: ele é muitos, que correspondem aos pontos de vista dos personagens da trama.

Como assim?

Cada capítulo é narrado por esse narrador pessoal, em terceira pessoa, mas que acompanha os olhos e a perspectiva de determinado personagem. Vamos ver o que ele enxerga, sentir o que ele sente, saber o que ele sabe. As impressões do mundo serão ditadas por ele e não por um observador externo, as pessoas terão faces diferentes dependendo de por quem elas são observadas – um dos exemplos mais óbvios aqui são os Lannister em geral e Jaime Lannister em particular – para a maioria das pessoas, um monstro, para Tyrion, seu irmão mais velho que resolve tudo na força bruta.

E claro, veremos a percepção do pater familiae, da mãe zelosa, de uma menina de onze anos e pouca coisa na cabeça, de um menino de oito, de um excluído social… São, como se pode perceber, perspectivas diferentes, que gerarão pontos de vista diferentes para os mesmos fatos.

O narrador, por óbvio, não é onisciente. Mais ainda: o leitor conhece mais da trama e de seus desdobramentos do que o narrador – e a construção dessa dinâmica é algo muito interessante de se notar.

Os Personagens e o Cenário

Não há como dissociar os dois elementos, tanto pela história ser narrada de forma intimista através de pontos de vista, como já discutido acima, quanto por serem esses os dois elementos que levam muitos a rotular A Song of Ice and Fire como fantasia realista – ou seja, a ambientação e os personagens são tão críveis que, tirante o fator pirlimpimpim, a série poderia ser facilmente confundida com um romance histórico. Inclusive, os dois primeiros terços de A Game of Thrones pendem muito mais ao romance histórico do que ao fantástico. Se a história se passasse na Inglaterra na época da Guerra das Duas Rosas ou na França mais ou menos do mesmo período, tudo permaneceria igualmente factível.

E os personagens… A narração em pontos de vista casa tão bem com a saga pela maneira como os personagens são elaborados. São pessoas reais transpostas em papel, com os acertos, erros e idiossincrasias que tornam cada um aquilo que é.

Trata-se basicamente de seres humanos: são pessoas que não podem ser qualificadas como boas ou más, com qualidades, defeitos e imperfeições. Há aqueles que possuem uma ética pessoal fortíssima, outros que não se importam em mentir e dissimular. Há os simpáticos, há os patéticos. É impossível não se apegar aos personagens, seja para amá-los, seja para amar odiá-los.

E sobre eles paira risco real: sim, personagens podem morrer para o bem da história, mesmo que eles estejam entre o rol dos principais. Sim, personagens podem tomar decisões erradas, ser vítimas de armadilhas sem que a armada os salve de última hora, ver suas ações gerarem as piores consequências possíveis, ficarem no chão – e também verem planos darem certo, verem planos darem mais certo do que o esperado, darem a volta por cima. Algo que costumo criticar muito a falta em outras obras está presente aqui: existe perigo, angústia, pode ser que o personagem em questão sobreviva, mas física e mentalmente abalado.

Voltando ao cenário (alguns aspectos mais referenciais serão deixados para a Parte III do especial), a construção prima pelo realismo e pela factibilidade. Não basta ao escritor criar um mundo paralelo sem alma para que haja uma história de fantasia consistente. Como Tolkien deixa bem claro, não se pode chamar um cenário de papelão de “mundo” – é preciso começar dos alicerces.

Claro, ao contrário de Tolkien, aqui não se começa de uma teogonia – até porque, apesar da existência explícita do sobrenatural, não há certeza nenhuma de que realmente exista algum deus – mas dos detalhes sobre a geografia, a história, a cultura.

Somos apresentados a fatos históricos de Westeros, como a ascensão e queda da dinastia Targaryen, rebeliões bem e mal-sucedidas, personagens históricos, antigas rixas que geram consequências até o tempo presente. Sabemos, por referências textuais automáticas, que não caem no enciclopedismo, que Dorne não é totalmente integrada ao resto de Westeros, ou que existem cidades-estado além-mar com culturas misteriosas e envoltas em lendas e mistérios mil.

Além das lendas e geografia, o mundo tem gostos, como os bolos de limão da Sansa, o vinho Redwyne, os pêssegos de Renly, os ricos e fartos banquetes festivos, os pratos repulsivos que se tornam verdadeiros manjares no momento da fome. Os rituais religiosos, seja da Fé dos Sete, de R’hlorr ou do Deus Submerso, estão lá, bem como os pequenos ritos comuns de cada dia. Aspectos práticos da política e a forma como os julgamentos são feitos também estão lá.

Uma regra social que acaba por se tornar importante: os sobrenomes dos bastardos. Bastardos não são oficiais, então não terão direito ao sobrenome oficial de sua família a menos que haja um reconhecimento régio. Então, além do estigma, carregarão ainda um sobrenome, cada um relativo à sua região de nascimento. Os bastardos do norte, por exemplo, se chamam Snow – “Neve”, combinando com o mundo de neve onde vivem.

E é isso o que faz um mundo ser palpável: o macrocosmo e o microcosmo, juntos, naturais, orgânicos.

E para não dizer que falei de um dos pontos que mais chamam a atenção: os nomes. Jon ao invés de John, Eddard ao invés de Edward, Catelyn ao invés de Catherine – nomes que soam como os equivalentes em inglês, mas recendem a tempos antigos – junto aos inventados, como Cersei, Tyrion ou Daenerys. É uma síntese de Westeros: um mundo que soa familiar a nossos ouvidos e olhos, mas que tem suas próprias particularidades e apropriações do real. É um mundo diferente, mas que guarda similaridades demais com o nosso para ser totalmente estranho.

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E aguardem a parte 3 e final do especial, que não vai demorar tanto, eu juro! 🙂

E LEMBRETE: o blog (e eu) está concorrendo ao Prêmio Melhores do Ano!!! Para votar, clique AQUI! 🙂

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Curioso para ler a série?

Livros em inglês, no original: A Game of ThronesA Clash of KingsA Storm of SwordsA Feast for Crows
Em português: A Guerra dos TronosA Fúria dos Reis



5 respostas para “A Song of Ice and Fire – George R. R. Martin – Parte II: Os Alicerces”.

  1. Olá, primeiramente gostaria de agradecer o link do nosso site na barra ao lado “www.sobrelivros.com.br”, segundo você fez uma ótima descrição, você escreve muito bem. Esta de Parabéns!

    Abraços.

    1. Avatar de Ana Carolina Silveira
      Ana Carolina Silveira

      Obrigada pelos elogios e espero que volte sempre ao blog! 🙂

  2. Carol, você é absolutamente fantástica em suas resenhas! Esta é o sonho de cada escritor vivente do mundo, mas mesmo que você não fosse tão límpida e retumbantemente generosa no seu texto com o George R. R Matin, gostaria de ter o prazer de um dia tê-la fazendo uma resenha de um livro meu. Não há como uma resenhista assim ser falsa ou dissimulaa por alguma razão. Você deveria ser profissional nisso, garota (você é?). Muito boa sua linguagem, seu estilo, seu ponto de vista, e sua paixão que extavasa as linhas. Parabéns!

    1. Avatar de Ana Carolina Silveira
      Ana Carolina Silveira

      Obrigada pelas suas palavras, mesmo mesmo mesmo!

      E eu não sou profissional nisso, só uma amadora – também no sentido de amar ler e contar minhas experiências.

      Mas obrigada obrigada mesmo! Agora vou passar o dia feliz!

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